sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A Língua


Existem certas “coisas” que se enquadram na categoria de alimentos, mas que não se enquadram em nada na minha vida.

Por aqui tenho estômagos variados. Uns gostam de tudo e outros de nada, ou quase nada. O meu estômago poderia ser definido como enjoado.

Aparência é algo definitivo na minha alimentação. Se tem cara boa, penso que deve ser uma delícia, se tem cara ruim... Porém, mesmo com meu pré-julgamento, sou capaz de experimentar para confirmar ou refutar a aparência.

Me esforço em agradar o estômago de todos, e resolvi me aventurar a fazer uma língua de boi que pai e filho, insistiam em pedir.

Acreditem, isso é de comer!

Fui ao supermercado e escolhi uma encolhidinha numa embalagem hermeticamente fechada (exagero puro). Trouxe-a para casa.

Primeiro passo: ligar para mamãe. Segundo passo: Ouvir atentamente às suas instruções. Terceiro passo: Mãos à obra!

Mãos? Não! Luvas. Era impossível encostar as mãos “naquilo”. Tinha que escová-la. Isso mesmo, escovar a língua. Igualzinho fazemos com a nossa. Na minha opinião deveria ser usado sabão, mas a sensatez da minha mãe descartou a idéia.

Esfreguei, esfreguei, esfreguei, torcendo para meu estômago não revirar. Joguei a escova novinha no lixo (que desperdício).

Coloquei a digníssima na panela de pressão e, enquanto ela cozinhava, tentava desviar meus pensamentos sobre o dono daquele órgão. Fui à Fazenda Canaã. Viajei pelas Minas Gerais, tentando criar um elo de simpatia para quebrar aquele “clima” de repugnância.

Uma hora e meia mais tarde, veio o momento mais difícil. Tirar a “pele”. Pele? Meu Deus, é um couro! Não gosto nem de lembrar. Ainda de luvas, tirei tudo e continuava sem compreender como alguém é capaz de digerir “aquilo”.

Terminei a labuta, ou melhor, achei que tinha terminado, quando os olhos atentos de um admirador de línguas me repreendeu: _ Oops, tem muita coisa aí ainda para sair...

Lavei as luvas, lavei as mãos, joguei a toalha. Ele segurou as rédeas desse boi inerte e acabou a tarefa. Me entregou fatiada.

Preparei, servi e observei. Os homens da casa, comiam com uma típica “boca boa”. Já nós, as mulheres...

Me aventurei a provar. Mas não tem jeito. É horrível!

Iguaria? Sei lá! Essa ameaçadora língua, que demorou quatorze anos para entrar na minha cozinha, terá que esperar outros quatorze para voltar. Será?

Mas pensando bem, vamos ver o lado positivo da coisa, já pensaram se ao invés de língua eles tivessem pedido dobradinha (vulgo bucho de boi)?

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ninho Vazio


Eu tenho o privilégio de possuir um observatório natural em casa, capaz de me fazer refletir sobre vários momentos da vida.

E, em um desses momentos de observação, que acontecia enquanto as crianças brincavam alegremente pela casa, fui tomada por um pânico de silêncio. Foi como se eu tivesse saído daquele “plano” e fosse levada para outro totalmente desconhecido.

Talvez influenciada por um amigo, que me contava que a filha moraria um ano no Canadá, eu me senti dividida com a possibilidade absolutamente real disso acontecer. O silêncio era fruto de uma visão da saída dos meus filhos de casa.

O tão falado “ninho vazio” é inevitável e absolutamente saudável na vida de uma família. Mas comecei a me questionar sobre o que, efetivamente, estou fazendo para quando este momento chegar.

A ciranda do dia-a-dia deixa sobrar pouco tempo para este tipo de preocupação. Estamos tão felizes hoje, que parece que, pensar nessas coisas, é pura tolice.Vamos tocando o barco, seguindo a maré e podemos acordar em meio a um oceano de solidão acompanhada. E aí, a única coisa que pode acontecer é naufragar! O número de casais que se separam nessa fase de “ninho vazio” é grande. Por que isso tem acontecido?

Nos diversos grupos de casais que participei, sempre ouvi falar sobre a necessidade de investir tempo no relacionamento, e penso que, de fato, tenho investido sim. Curto fazer surpresas, organizar viagens a dois, assistir filme juntinhos, preparar o prato predileto. E pergunto-me: quanto? Como? Será que serão suficientes para que o silêncio deixado pelos filhos não ensurdeça um relacionamento de anos?

A “inclusão social” dos filhos em tudo que fazemos é simplesmente deliciosa e na maioria das vezes, prioritária, mas os programas a dois são tão importantes quanto. É preciso saber dosar, reaprender a viver a dois.

Uma vez li um texto que dizia que temos que nos casar com alguém com o qual gostamos de conversar. Concordo, mas acrescento a esta receita uma infinidade de “pitadas” de temperos úteis e indispensáveis para uma união feliz, principalmente após a saída dos filhos. Cada um que repense a receita mais apropriada ao seu tipo de vida e de relacionamento. Eu, começo hoje uma nova dieta, na qual a única coisa que quero perder, são as possíveis brechas da distância, para evitar que elas preencham o vazio deixado pelos filhos.

Sei que quero um “ninho vazio” bem aconchegante e paradoxalmente, bem cheio de todo amor que transbordou em mim no dia em que entrei naquela igreja e disse que poderia amar e respeitar alguém tão especialmente escolhido, todos os dias da minha vida. Que essa “fala” seja livre como é meu espírito, leve como são meus pensamentos e forte como são meus sentimentos.

Não consigo cogitar da idéia de me ver “condenada” a viver com alguém. Não quero como sentença, um fim de vida infeliz. Portanto é a hora (sempre é hora) de investir em nossos relacionamentos, lembrando que, em muitos momentos, a criatividade terá que superar as finanças.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Quando a escassez chama-se abundância


Quando a escassez chama-se abundância

Tenho conhecido várias comunidades carentes ao longo deste ano, ao prestar serviços para uma ONG.

As experiências têm sido enriquecedoras. Especificamente, nos últimos meses, quando venho realizando diagnósticos sócio-econômicos delas, aprendi um novo conceito: escassez é abundância.

Nós, “do mundo de cá” preocupamos em sobreviver, claro. Mas nossas preocupações passam, por exemplo, pelo valor que pagamos nas mensalidades da escola de nossos filhos. Eles, “do lado de lá” se preocupam com o valor do transporte para conseguir chegar à escola pública.

Saber que diferenças existem, é real, mas conhecê-las de perto é muito “impactante”.

Ter um saco de arroz e poder dividi-lo com um vizinho que só teve tempo de salvar o filho de 7 meses, antes que a enchente levasse tudo de sua casa, é sentir-se em situação de abundância.

“Eu não tenho muito, mas o que tenho dá para dividir...” São falas assim, comuns em comunidades carentes, que nos levam a refletir sobre nossos valores.

Eu alguns lugares fui recebida em terreno baldio, pois não havia uma casa que comportasse um grupo de oito pessoas. Em outros, nos espremíamos, para que ninguém ficasse de fora. Em alguns, até serviam café. Crianças faziam desenhos para dar de presente. Eles sabem dividir sua escassez!

“Saiba onde está seu tesouro e lá estará seu coração”. E quais são, hoje em dia, os meus tesouros? Será que podemos considerar a nossa “escassez” como verdadeira abundância?

Sou otimista por natureza e grata a Deus de todo meu coração. Considero-me abençoada, protegida e em condição de abundância, mas sempre colocamos uma vírgula no caminho para uma míope escassez.

Se temos carinho demais, pensamos que talvez seja pouco, se temos dinheiro suficiente (veja bem, não disse demais, disse suficiente), achamos que é pouco. Armários e sapateiras cheios, é pouco. Despensa farta, poderia ter mais e assim, citar uma infinidade de exemplos de “escassez”.

Senti vergonha ao achar que minha “modesta" abundância engana meus olhos e meu coração.

Muitos pensam que moradores de comunidades, carentes vivem lá porque não têm ambição, são acomodados, falta-lhes garra ou vontade de vencer. Mas o que vi por lá, é bem diferente. Trabalham muito, arrumam tempo para estudar, defender seus direitos, buscar melhorias. Doam-se. Vivem, ou melhor, sobrevivem à tantas injustiças.

Para eles, diferente de nós do “mundo de cá”, sobreviver já é uma grande vitória. É abundância de vida!